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Se alguém me dissesse que hoje já não é verão, eu acreditaria. Os dias têm sido cinzentos e têm um aspecto de despedida das festas, do sabor sensual do verão. É certo que as estações do ano não são mais tão definidas como já foram, um dia, mas, mesmo assim, alguma coisa dentro da gente avisa a passagem de uma para outra. Não crê nisso?
Ainda não é noite. Lá fora, o lusco-fusco de uma quinta-feira seguida às cinzas depois de um carnaval comum. Comum e sangrento, segundo os jornais. Eu ainda estremeço quando penso nisso - a violência ainda me assusta, ainda me entristece e jamais me parecerá banal.
O que me dói é a voracidade com que algumas pessoas se lançam a práticas terríveis em que demonstram a pouca importância que dão à própria vida.
Um gosto amargo me chega à boca e penso que toda a minha alma se vê assim - carecida de doçura.
Vai ver é por isso que busco você, nesta nova carta.
Nem sei se já recebeu - e leu- a última que enviei, pois não sei em que porto do mundo de mares tantos você está alojado, se agora é dia ou é noite, quase primavera ou quase outono...
Entretanto, buscar você parece ser o que mais me adoça a alma, nesses dias em que me demoro a reconhecer a dor de nossa raça, a mesma dor que parece tão grande quando o céu sobre nós, meu amigo. E eu o faço sem demora, quando a urgência me toma a mão que se lança à pena -quem dera fosse - para levar-lhe a minha letra carregada de nuanças femininas.
Há pouco eu o imaginei sentado à beira de um cais. A imagem me causou mais do que carinho, uma saudade imensa. Amigo do mar, poeta de tantas jornadas a navegar e a aportar quando bem se lhe dá. Ou, simplesmente, amigo meu.
Estou enviando uma fita de cor grená - você me disse, na última carta, que não conhecia a cor. Corri em busca de um exemplo e encontrei a fita de um cetim acariciante. Lembrei-me de que gosta de receber de mim as bobagens que mando, disse-me sentir fazendo parte de um imenso baú de recordações.
Espero que as cartas estejam dentro do seu. Porque são parte de nós e de nossa história.
Que esta fita acaricie seu rosto como a brisa dos seus finais de tarde junto ao cais.
Abraço você com meu nome, quando me despeço.
Até breve...
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2 comentários:
Aglaé, estou encantado com sua carta de quase outono, endereçada a este interlocutor para mim imaginário e por você imaginado à beira do mar, com direito a uma fita grená e tudo. Bela, foi o que achei. Em parte é uma crônica em seguida às cinzas dum carnaval adequadamente descrito como sangrento (e não sem motivo).
Passa muito de seu carinho que nada tem da autopsicografia pessoana.
Todas as congratulações, viu?
Linda carta!
Gostei!
Habito nos teus olhos luz, brilho de encanto!
Respiro das janelas do teu rosto o sorriso
Dos cabelos, soltas o perfume que preciso
Castelo do teu ser em que por ele amo e canto
Desejo um resto de um bom dia!
O eterno abraço…
-MANZAS-
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